O diácono Simão estava sentado em uma cadeira de madeira na sala escura, iluminado apenas pela luz das velas. Sobre seu colo mantinha uma bíblia aberta, mas não a lia. Na verdade, evitava olhar para ela.
Ele achava que Deus havia esquecido aquele pedaço de terra. Uma vila afastada, distrito do recém fundado Município de Nova Esperança. O pastor de sua igreja era um velho que mal podia andar sem ajuda. E era a ele, o diácono, que restava os piores afazeres. Não, ele não se importaria de se submeter aos piores dos castigos se isso trouxesse paz ou um resquício sequer de esperança àquela esquecida comunidade. No entanto, não era isso que ocorria.
O fato era que, as colheitas já estavam minguando, o gado já não era tão gordo, e o leite era ralo e quase translúcido, e os frutos nas árvores nasciam pequenos e permaneciam assim até rapidamente apodrecerem e serem cobertos por moscas. As pessoas tinham feições duras, tristes e sequer lembravam de sorrir. A morte parecia sempre à espreita, cobrindo as poucas casas da cidade com o seu manto negro.
Algo havia de ser feito. Simão não aguentava mais conviver com todo aquele sofrimento. Não, as pessoas não reclamavam, pois o sofrimento já lhes era inerente, nada mais que o normal. E só alguém, vindo recentemente de fora, como ele, podia enxergar e compreender aquilo. E ele conviveu com isso por longos cinco anos, até que se convenceu de que algo deveria ser feito. E estava prestes a fazer.
Simão fechou a Bíblia com rispidez e se livrou de seus devaneios quando um murmúrio baixinho iniciou-se sobre a laje de pedra à sua frente. Uma massa levemente iluminada pelas chamas começara a se contorcer sobre a cama rija. A escuridão já lhe era amiga há tempos, já que o sol não gostava de dar as caras por aquelas bandas, por isso ele podia enxergar bem a criança nua acorrentada.
— Oh, minha pequena ovelha inocente… Se pudesse ser de outra forma…
O menino ia acordando aos poucos, e à medida que isso ia acontecendo, mais ele forçava os membros contra as correntes que apertavam seus pulsos e tornozelos. Seus olhos negros, esbugalhados de pavor, corriam de um lado ao outro. Ele não podia falar, pois sua língua havia sido arrancada enquanto ele estava desacordado e estava posta sobre seu umbigo. E conforme sua mente acordava, ele tomava consciência de que lhe faltava algo na boca, e uma dor lacerante lhe acometia.
O menino não podia falar, mas em meio a suspiros ofegantes e soluços angustiantes, ele soltava algum sussurro rouco. Simão nada fazia, senão angustiar-se junto, sabia que ninguém lhes ouviria ali, não àquela hora e muito menos naquele sala de pedras, onde nem mesmo ele podia ouvir a chuva forte que surrava a região lá fora.
Era chegada a hora. As chamas trêmulas das velas se pareciam menos trêmulas, entretanto a iluminação precária e alaranjada permanecia. O diácono caminhou até uma espécie de altar em mármore na parede oeste da sala de concreto e coletou uma adaga de prata e uma folha velha de papel, onde havia desenhos e algumas frases que ele tinha copiado de um livro antigo em sua viagem ao Oriente Médio há poucos anos.
O menino se contorcia em vão, e suas lágrimas silenciosas escorriam, lavando seu rosto. Simão aproximou-se da laje de pedra e trouxe o papel próximo aos olhos para ver melhor. Ele já havia praticado, antes, várias e várias vezes a gravação dos símbolos, é claro, porém ele precisava ter certeza de que não faria nada errado. Ele só tinha aquela chance. Em seguida tomou firmeza em sua mão que segurava a adaga.
Um arrepio percorreu suas costas até chegar na nuca e ombros e se espalhar pelos braços, eriçando seus pelos. Sua mandíbula tremia, fazendo seus dentes baterem repetidamente uns contra os outros. Ele olhou a criança nos olhos e eles eram como bolinhas úmidas afundadas em poços escuros. O menino tremia também, assim como seu algoz. Lágrimas brotaram e escorreram dos olhos do diácono.
— É necessário… — balbuciou aproximando a ponta afiada, que refletia a luz alaranjada das velas, ao tórax nu e magro.
A lâmina apertou-se contra a pele fazendo-a afundar por meio centímetro antes de rompê-la e fazer escorrer o líquido viscoso e escuro. E ele forçou a adaga para o lado, levando o corte adiante. O menino urinou. O odor ferroso do sangue misturava-se ao cheiro da parafina queimada e da urina e ardia seu nariz. Mesmo sem língua, o grito áspero que escapou daquela pequena boca atingiu como uma lança os tímpanos do diácono.
Simão também chorava e suas lágrimas se misturavam ao suor que escorria de seu rosto. Seu coração estava batendo como um terremoto em seu peito. O menino soluçava, suspirava, e tentava se debater, no entanto, a lâmina não podia parar mais. O catarro da pobre criança espirrava ou formava bolhas no nariz a cada soluço. O sangue escorria de seu peito e descia pela lateral das costelas e banhava toda a cama de pedra e depois pingava ao chão.
E a adaga continuava em movimento, sem parar, indo de um lado ao outro, partindo a carne em filetes, formando lábios de carne crua, marcando a pele com os símbolos necessários. O primeiro deles já estava riscado logo abaixo do pescoço.
— A carne, o pecado, a matéria… — cochichou Simão.
Ele era um homem de Deus. Um sábio de coração piedoso, provavelmente, seria o próximo da fila para quando o velho e atual pastor morresse (o que parecia ser logo), e era seu papel cuidar daquela gente, daquela cidade morta; também era isso o que as pessoas esperavam dele. Ele representava esperança. Uma esperança muda, pois o povo já estava se acostumando à miséria que lhes atingia, mas no fundo de suas almas gritavam por socorro, por piedade…
Com a adaga prateada manchada com o vermelho cintilante, ele concluiu o terceiro e último símbolo.
— E agora, a unidade, a energia, o todo… E também o espírito, o intocável e os mistérios…
O menino havia desmaiado e acordado diversas vezes durante o processo. Seus olhos estavam inchados e vermelhos. De sua boca escorria uma baba avermelhada. Ele se entregara, não reagia, apenas aceitava a dor e o sofrimento.
Simão estava ofegante, sua respiração era como um chiado cacofônico e dificultoso e seu corpo tremia. Depositou a adaga ao lado do corpo entregue do garoto e o contemplou. Outras lágrimas escorreram dos olhos do diácono e encontraram o sangue esparramado sobre a cama de pedra.
— Oh, Deus, como me arrependo disso… mas não é por mim, Pai. Me perdoe, oh, Senhor.
Simão afagou o cabelo do menino com carinho e conferiu as correntes que estavam bem presas. Agora vinha a pior parte. Seu estômago estava embrulhado; a bile subiu à boca, e ele engoliu rapidamente para não vomitar. Caminhou outra vez até o altar e pegou uma taça, também de prata. E retornou à laje de pedra, posicionando-se atrás da cabeça do menino, que evitava olhá-lo, mas derramava uma quantidade enorme de lágrimas. O diácono pegou a adaga que estava sobre a pedra e posicionou-a sobre o pescoço do menino. Ele hesitou, sentiu seu corpo tremer e por alguns segundos retesou os músculos. Depois fechou os olhos, suspirou e passou a lâmina com força no pescoço da jovem vítima.
O menino gorgolejava sangue pela boca e, através do vão de carne formado pelo corte, jorrava o sangue de acordo com as batidas do pequeno coração. Simão posicionou a taça ao lado do ferimento mortal e a encheu com o líquido espesso e vermelho. As pálpebras do menino permaneceram abertas e os globos oculares viraram-se vesgos para trás, permanecendo visível apenas a parte branca. Sua falta de movimento, a face pálida e os lábios acinzentados denunciavam sua morte.
Simão, que permaneceu para trás da laje, de onde estava posicionada a cabeça do menino, molhou a ponta do dedo indicador no sangue e tocou três vezes a própria testa, formando três marcas na vertical. Em seguida, segurou a taça com as duas mãos acima da cabeça do cadáver e balbuciou palavras em línguas desconhecidas. Depois tomou um gole do sangue. O gosto ferroso descendo por sua garganta fez seu estômago apertar e embrulhar. Depois proferiu novamente outras palavras e tomou outro gole de sangue. Dessa vez o cheiro, ao aproximar a taça da boca, fez voltar quase todo o conteúdo de seu estômago e ele fechou a boca para que não vomitasse e engoliu tudo novamente. E repetiu as palavras estranhas e em seguida tomou todo o restante de sangue da taça.
Dessa vez ele não se enjoou. Seus dentes estavam manchados de vermelho. De seus lábios escorria um filete de sangue que pingava e manchava sua camisa branca. Seus olhos eram tristes, olhavam para as paredes escuras. Seu corpo gelado tremia como gelatina. Sua testa e seus cabelos estavam molhados de suor e suas lágrimas caíam sem parar. Um cheiro podre de morte invadiu a sala oculta no subterrâneo da igreja. E nada aconteceu.
Simão jogou-se sentado ao chão, depois deitou-se abraçando os joelhos e chorou copiosamente. Soluços, lágrimas e catarro com gosto de sangue se misturavam em sua face. Um silêncio perturbador lhe castigava os ouvidos. Algo naquela sala era opressor e pesado e ele sabia que não era o cadáver de um menino acorrentado na cama de mármore, nem mesmo o sangue espalhado por todos os lados. Era sua consciência, sua angústia pessoal. Depois de tudo o que fez, nada mudou, nem um sinal sequer veio dos céus.
— Oh, meu Deus… O que fiz?
Naquele instante uma brisa fria ardeu em seu rosto. Seu peito doeu e faltou-lhe o ar. Um raio estrondoso fez tremer a estrutura da sala, e as velas se apagaram de uma vez. Então ele conteve o choro e levantou-se do chão imundo. O ambiente estava tomado pela escuridão, e mesmo assim, ele pode enxergar os olhos completamente negros do menino se movendo, e também os lábios dele se esticando até quase tocarem a orelha, formando o sorriso mais amedrontador que já havia visto.
— És um tolo, mortal… Um breve pedaço de carne — disse o que habitava o menino.
Sua voz soava como dezenas de sinos em meio a uma tempestade, mas também era mansa como a brisa que deita o capim pelos campos.
Simão caiu de joelho, enxugou o rosto com a manga da camisa e finalmente esboçou um sorriso. Seu coração pulava retumbante sob sua caixa torácica. Havia dado certo, o ritual funcionara.
— Oh, adorado anjo do Senhor, peço que tenhas compaixão de mim. Sabes bem por que fiz o que fiz… — novas lágrimas escorreram de seus olhos, e após um soluço continuou. — Tenha compaixão, meu Senhor. Foi necessário, foi necessário, eu juro…
O ser divino, que se apossava do corpo morto do menino, estalou os olhos em direção ao diácono. Sua pele agora era ressecada, cinzenta e, naquele momento, o rosto do menino portava linhas cadavéricas e expressões sádicas.
— Não há perdão para o que fizeste — disse o anjo, bradando como sinos. — Nenhum arrependimento será o suficiente para curar a ferida que se abriu em sua alma. Você selou o meu eterno destino, me aprisionou neste pequeno pedaço de carne podre. E eu, com o ódio que me transborda, lhe amaldiçoo e amaldiçoo essa cidade, essa terra que agora é maldita. Sua fome e a fome dos seus não será por alimento. Serão como as moscas, que sentem prazer pela carne e pelo sangue e pelo pecado!
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