Rafael abriu a porta e encontrou Vanessa sorrindo.
— Oi, amigo! Como tá? Melhorou?
Ele a abraçou rapidamente, deu-lhe um beijo no rosto e a chamou para entrar. Era verão, e uma onda de calor assolava a região, mas Rafael sentia frio na pele.
— Meu peito ainda dói um pouco, mas a dor de cabeça já passou — explicou.
Entre conversas regadas a cerveja gelada e pizza, chegaram no assunto em que ele relutava em comentar. Vanessa era a única amizade que poderia escutá-lo. Ele acendeu um cigarro e pigarreou antes de prosseguir:
— É quase sempre a mesma coisa e dessa vez foi igual. Eu acordo e me vejo imerso em algo parecido com gelatina, só que um pouco mais líquido.
— E o que mais? — perguntou Vanessa.
— E está tudo escuro, quase não percebo nada ao redor.
— E dá pra se mexer? Você já tentou isso?
Um tremor percorreu o corpo de Rafael. Ele tragou o cigarro e bateu as cinzas no copo que antes continha cerveja.
— Na verdade, sim. Da última vez, tive um pouco de controle, mas…
— Mas?
— Mas eu não tinha corpo. Quer dizer, eu até tinha, mas não era o meu.
Vanessa franziu a testa e deixou escapar um sorrisinho de lado.
— É sério, Vá! Parece loucura, mas é verdade.
— Oxe, claro que não é loucura, é só um sonho maluco… Não sei por que tá tão preocupado — consolou ela.
— Não sei, mas não me parece mais só um sonho…
Vanessa riu, pegou o seu copo com cerveja e o esvaziou na boca.
— Por quê?
— É muito real. Eu sei que quando estamos em um sonho, nós também achamos que é real enquanto acontece. Mas isso que está havendo comigo é tão real quanto nós dois que estamos aqui.
Rafael tragou o cigarro outra vez e soltou a fumaça para o alto. Fechou os olhos por alguns segundos, respirou fundo e continuou:
— Eu sonho com isso desde criança, e antes era só alguns flashes rápidos. Agora, isso acontece até quando estou acordado. Consigo sentir a temperatura e o líquido na pele. Consigo enxergar, mas não é através dos olhos, não sei explicar… É como se eu “cheirasse o que vejo”, mas também não é isso. Não sei mesmo explicar.
A moça ergueu uma das sobrancelhas.
— E você ouve alguma coisa durante o sonho?
— Sim — ele disse e tragou o cigarro.
— O quê?
— Bom… não é bem ouvir. É mais como uma sensação… Um chiado… às vezes forte, às vezes fraco.
Vanessa pegou uma fatia da pizza, que já estava fria, e deu uma mordida.
— Um chiado? Só isso? — perguntou com a boca cheia.
— Sim. Como um rádio fora de estação. Só um shhhhhhhhh… — ele fez uma pausa e voltou os olhos para o teto. — Está ouvindo?
Shhhhhhhhh…
Rafael olhou para seu corpo e ele boiava no líquido gelatinoso. O frio o incomodava um pouco, e adiante, em meio ao breu quase absoluto, havia luzes pálidas azuladas. Elas pulsavam lentamente.
Tentou se mover e conseguiu. Tentou novamente e conseguiu. Ele possuía muitos braços, pelo menos seis deles, com pinças nas extremidades em vez de mãos. Tocou o próprio corpo que era frio e grudento, talvez por estar submerso. Moveu as pernas e, com movimentos ligeiros, conseguia girar em sua própria órbita. Percebeu que não precisava respirar. Não. Respirar não era algo intrínseco àquele corpo. Mas sentiu que algo faltava dentro de si. Era um vazio, mas também algo como fome. Sim, se parecia mesmo com fome, mas também como se ele fosse incompleto.
Vanessa o sacudia, lágrimas escorriam de seus olhos esbugalhados. Com o celular na orelha, gritava com alguém.
— Preciso de uma ambulância! Venham logo, por favor, parece que ele não está respirando mais.
Rafael repousava a cabeça no colo da moça que estava sentada no chão. Seu peito doía tanto que irradiava para os braços e parecia que ia explodir, e se tudo isso durasse mais um pouco, seu estômago, que embrulhava, colocaria tudo o que havia comido para fora.
Seus braços estavam ficando dormentes, a visão era trêmula e desfocada. A voz de Vanessa parecia um eco distante que reverberava em sua mente. E o chiado…
Shhhhhhhhh…
O líquido diminuía gradativamente. As luzes pulsantes vinham de além da película incolor que envolvia ele e a substância viscosa. E a estrutura estava se rompendo. Rasgos surgiam a partir do topo do invólucro, conectado a uma haste orgânica de aspecto rugoso. Dos rasgos, a substância gelatinosa escorria aos poucos para fora. Rafael agitava seus muitos membros. Entre um giro e outro, viu que as luzes vinham de outros invólucros com líquido, como aquele em que estava, semelhantes a cachos de casulos. E havia outros seres como ele nos outros invólucros. O chiado ficava cada vez mais alto e a temperatura subia pouco a pouco, tornando-se mais confortável.
As lâmpadas retangulares do teto do corredor passavam rápidas sobre sua cabeça. Ao seu lado, pessoas com roupas azuis e máscaras nos rostos, empurravam apressados a maca onde estava repousado.
— Saiam, saiam da frente! Emergência! — dizia um deles.
As lâmpadas tornavam-se longínquas, como pequenos pontos brilhantes em um paredão negro, e dançava dentro de sua mente. Tudo o que ele podia sentir eram resquícios distantes da realidade e sua carne era só uma janela por onde observava.
Shhhhhhhhh…
A película da bolsa onde mergulhava estava quase toda rompida. Já não restava mais tanto líquido. Nos outros ovos, as criaturas se mexiam e usavam seus membros para rasgar o restante do invólucro. E ele fez o mesmo. Precisou usar muita força para se posicionar de uma forma adequada, mas, após isso, parecia natural ficar naquela posição e já não era mais necessário nenhum esforço. Esticou os membros superiores e depois girou-os de forma a fazê-los rasgar toda a película que o envolvia anteriormente. Não demorou para que caísse. Todos os outros ovos estavam suspensos por hastes rugosas, assim como o dele.
Caiu por longos segundos até chocar-se com o chão macio e liso. Moveu os membros para voltar à posição. Milhares de outras criaturas como ele caíam das alturas, umas sobre as outras. Algumas eram maiores e outras menores. E o vazio dentro de si aumentava. Fome.
As criaturas, que possuíam cores entre o azul e cinza, seguiam uma direção instintiva, pisando e tateando tudo ao redor, e ele sentia uma vontade incontrolável de fazer o mesmo. Tudo era liso, viscoso e parecido com carne. Era escuro no geral, mas havia pêndulos, esverdeados ou azulados, como tentáculos, que desciam do alto. O chão variava entre o verde e o rosa, com estrias luminescentes azuis percorrendo toda a extensão como ramificações venosas, até onde sua “vista” podia alcançar.
Da janela turva de seus olhos, podia ver os médicos agitados sobre seu corpo. Desfibriladores. Ele tinha medo deles em outros momentos. Mas, ali, não sentia nada. Nem dor, nem medo, nem sofrimento… Tudo foi se esvaindo aos poucos, tornando-se inalcançável. Mesmo que quisesse, ele não possuía mais controle sobre aquela máquina de carne.
Ainda conseguiu ouvir o piiiiiiii contínuo do monitor de frequência cardíaca antes de tudo sumir.
Shhhhhhhhh…
As criaturas se moviam pelo solo de carne, seguindo um instinto primitivo e um vazio que ansiava ser preenchido. Logo à frente, havia uma espécie de muralha orgânica esverdeada, repleta de sulcos úmidos de onde escorria um líquido amarelado. As criaturas aceleraram ainda mais, pisoteando umas às outras e escalavam a parede. Não havia sulcos o suficiente para todas.
Os seres, brigavam entre si, rasgavam os corpos um dos outros, decepavam membros, perfuravam peles… Tudo por uma chance de se acomodar em um sulco úmido. Quando conseguiam, sentiam-se acolhidos e os seus vazios eram preenchidos. Não havia mais fome. Rafael já não sabia o seu nome, nem que havia tido um. Não restavam lembranças da vida passada. Tudo o que lhe acometia agora era um impulso primal de saciar sua fome, seu vazio interior.
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