EZEQUIEL
Danyllo B. Freitas
— Vocês não acham que a enfermeira Ana tem dado muita atenção ao tal do Ezequiel? — perguntou Dona Rute aos colegas.
Seu Sérgio viu de longe a mocinha enfermeira levar uma colher com sopa até a boca de Ezequiel, revirou os olhos e disse:
— Ela o trata como se fosse uma criança…
— Sim, e ele é o mais forte daqui. Eu mesma não consigo nem ir ao banheiro sem ter alguém para limpar minha bunda.
Dona Rute se ajeitou, girou as rodas da cadeira e pegou uma revista na mesinha da sala de descanso do Asilo Para Idosos São Bento. Folheou algumas páginas e já não havia imagens que já não tivesse visto antes. Fechou a publicação com rispidez e a jogou de volta na mesa. “A gente vive por anos, se doa para o mundo e no fim acaba assim, como um pedaço de trapo velho, nessa merda de lugar…”, pensou.
— Ezequiel é um velho forte — balbuciou Romeu com a voz fraca. — Mas ele já está ficando demente.
— Não fode, velho caquético. Ele se faz de bobo para ser bem tratado, isso sim. Não vê como ele nos olha? É um homem sinistro.
Romeu, que estava sentado em uma cadeira na mesa de jogos, apoiou-se e fez força para virar o corpo e olhar para a direção do idoso que era tratado pela enfermeira em uma poltrona no outro lado da sala. Um arrepio percorreu o seu corpo seco.
Ezequiel olhava para eles com os olhos vidrados e um sorriso intrépido no cantinho dos lábios finos. Devido a sua alta estatura, sentava-se encurvado na poltrona. Suas linhas cadavéricas e pele pálida, dava-lhe um ar assustador, e os olhos pequenos pareciam dançar dentro de dois poços negros. Ana limpava sua boca com um guardanapo.
— Sinto saudades de quando ainda tínhamos a simpatia da Aninha. Ela simplesmente nos abandonou quando esse velho chegou… — comentou Dona Rute
— Para de ser mesquinha, Rute, sua invejosa. HAHAHAHA! — gargalhou Sérgio seguido de uma tosse carregada.
Rute apenas deu de ombros e continuou matutando em sua debilitada mente. Lembrou-se do dia em que Ezequiel chegou.
A chuva surrava o Asilo que brotava da colina como uma ferida infeccionada. As nuvens negras tomavam o céu e os raios riscavam o horizonte seguidos de trovões estrondosos. As poucas enfermeiras corriam para lá e para cá pelos corredores, cuidando dos velhos assustados e das goteiras que insistiam em surgir nos lugares mais improváveis.
Dona Rute havia desobedecido a ordem de permanecer em seu dormitório e perambulava pelos corredores do recinto em sua cadeira de rodas, vez ou outra trombava com um funcionário ou era atingida por uma goteira.
Ao passar pela sala da recepção, um raio rasgou o céu até uma árvore do jardim partindo-a em duas e fazendo um clarão invadir o recinto através dos vidros da porta principal e, em seguida, tudo foi mergulhado em breu. O gerador de energia havia explodido.
O coração fraco de Dona Rute acelerou-se e ela quase podia vê-lo pular pela boca.
— Mas que merda! — resmungou.
Com a escuridão que abraçava a região, a idosa mal conseguia enxergar um palmo à sua frente. Apenas quando os relâmpagos cruzavam o céu e sua luz invadia a recepção, que ela via alguma coisa e era nesses momentos que ela tentava se mover. Ela também tentava se orientar pelos sons, já que sua audição era um dos poucos sentidos que não estava muito comprometido.
O vento forte lá fora produzia um chiado rouco e horripilante, fazendo a chuva jorrar contra o vidro da porta principal. E ela sempre acabava andando em círculos. E foi em um desses momentos de confusão que ela viu, através de um relâmpago, no vidro a silhueta de um homem alto. Havia alguém na porta do lado de fora.
— Alguém ajuda! Enfermeira Ana! — Gritou.
“Eu devia era ter deixado esse velho morrer na tempestade no dia que ele apareceu… Que cabeça a minha… “, pensava, “Ana era tão boa para nós, cuidava com tanto carinho. Aí esse velho apareceu pelado na porta e não tivemos mais sossego. Além do mais, que homem estranho”.
Dona Rute parecia hipnotizada. Imóvel no meio do cômodo, seus olhos encaravam a parede branca da sala.
— Ela é que está ficando demente, Romeuzinho! HAHAHA! — Sergio disse ao companheiro que o acompanhava em uma partida de dominó.
Aos poucos os olhos de Dona Rute tomavam brilho, suas sobrancelhas arquearam, como se uma boa ideia tivesse lhe explodido na cabeça e um sorriso esticou sua face enrugada, exibindo um dente de ouro dentre os demais na dentadura. “Essa é uma ótima ideia!”, comemorou em pensamento.
— Vamos matá-lo! — disse ela um pouco depois de se aproximar de Sérgio e Romeu.
Sergio gargalhou como sempre e arqueou o corpo em seguida para tossir. O que foi interrompido por um safanão de Dona Rute em sua careca. Romeu não esboçou nenhuma reação e continuou o saque de uma das peças de dominó do monte de compras.
— Tá mais surdo hoje, Romeu?
Rute encarou-o.
— Em?
— Eu disse que vamos matar o tal do Ezequiel.
Romeu sorriu achando que era brincadeira, mas em seguida desfez a graça ao perceber a insistência nos olhos da velha na cadeira de rodas. Os movimentos dele eram limitados, mas ele se esforçou para se alinhar na cadeira e encarar a amiga.
— E por que faríamos isso, Rutinha?
— Ora, seu caquético! Se qualquer um de nós aqui tiver mais dez anos de vida, é muito. E passar o resto da merda desses dias sendo maltratada e deixada de lado por essas vacas de enfermeiras não me agrada nem um pouco…
Seu Romeu ficou em silêncio, tentando imaginar o resto de seus dias. Sergio, por sua vez, sorriu e concordou.
— Querem saber? Concordo! Mas como?
Dona Rute voltou o corpo em direção aos dois idosos na mesa de jogos.
— Precisamos de algo para machucá-lo pra valer. — disse ela cochichando. — E eu tenho uma ideia!
Sergio e Romeu largaram as peças de dominó e tornaram os ouvidos em direção à velha, para que pudessem ouvir melhor e aguardaram ela continuar.
— Hoje tem oficina de costura à tarde. Será facinho pegar uma tesoura e esconder embaixo das minhas pernas!
— E como vamos atacar ele sem que ninguém perceba? — perguntou Sergio com os dentes cerrados.
— Bom, teremos que esperar a hora certa, quando não tiver ninguém por perto… — sugeriu dona Rute.
Enquanto os três planejavam, Ezequiel continuava sentado na poltrona, observando-os com seus olhos pequenos e penetrantes. Ana levantou-se e viu que ele encarava os três do outro lado da sala, acariciou seus poucos cabelos brancos e perguntou se estava tudo bem. Ezequiel assentiu lentamente em um movimento com a cabeça.
Ana se virou para sair, mas hesitou.
— Hoje, vocês três aí, não terão sobremesa. Não sei o que tanto cochicham! — bradou antes de sair da sala.
Dona Rute esperou que Ana estivesse fora de alcance antes de se virar para seus companheiros.
— Precisamos agir logo. Essa noite será o ideal!
— Poxa, eu queria comer gelatina — comentou Romeu.
— Você pode comer o quanto quiser essa merda sem gosto outro dia, velho. A gente vai fazer o seguinte, já que vocês dormem no mesmo quarto, quando for dez horas da noite o Serginho vai gritar e chamar as enfermeiras dizendo que o Romeu está passando muito mal. E você, velho caquético, terá que fingir estar doente.
Os dois senhores encaravam Rute, enquanto ela explicava o plano.
— Assim que os enfermeiros da noite correrem para lá, eu saio do meu quarto com a tesoura e vou até o quarto do Ezequiel e o encho de furo enquanto ele dorme. Deixa comigo, que eu faço o trabalho sujo, seus merdas.
Em seguida, apreensivos, olharam para Ezequiel, mas ele não estava mais na poltrona e nem na sala de descanso.
Já era por volta das oito horas da noite, após o jantar e o chá, quando as enfermeiras encaminharam os idosos aos seus respectivos dormitórios. Rute era empurrada por uma enfermeira rechonchuda quando passou ao lado de Romeu e Sergio, que caminhavam com dificuldade até seus quartos.
— Às dez, meninos… — cochichou com uma piscadela.
Os dois idosos entenderam o recado e entraram no quarto.
Pouco depois, em seus aposentos, Dona Rute estava ainda em sua cadeira de rodas e segurava o objeto metálico e frio entre as mãos. Sua respiração era pesada e parecia que o ar gelado dificultava ainda mais o fluxo de oxigênio. Já havia se passado muitos anos desde a última vez que cometera ato parecido.
O vento lá fora estava ficando cada vez mais forte, e as nuvens pesadas impediam a visão da lua cheia. Seu coração batia como socos em seu peito cansado. Suas mãos tremiam e suavam frio. Por isso decidiu esconder a tesoura dentro do casaquinho que vestia e aguardar o horário combinado.
Eram quase dez horas e o silêncio e a escuridão dominavam o Asilo. Apenas o vento lá fora cantava uma música cacofônica. “Vamos logo, seus velhos de uma figa!”, pensou ela.
Alguns minutos depois escutou a voz de Sergio gritando por uma enfermeira. Dona Rute segurou com força a tesoura sob o tricô do casaquinho e respirou com calma, mas seu coração estava entalado na garganta. Alguns passos apressados cruzaram o corredor em direção ao quarto dos dois idosos e Dona Rute aguardou alguns segundos antes de segurar a maçaneta da porta do quarto e girá-la vagarosamente. Abriu-a com cuidado para que não rangesse e levou-se com a cadeira para o corredor. Havia algumas luzes acesas por causa do chamado de Sergio, mas não tinha ninguém nos corredores que poderia impedi-la.
Girou a cadeira para o lado oposto ao quarto dos colegas que a ajudava com o plano e foi guiando lentamente até o final do corredor, onde havia uma porta solitária. Era o quarto de Ezequiel. Rute aproximou sua cadeira e encostou o ouvido na porta. Silêncio. Ela podia ouvir o próprio coração e a respiração arrastada. “Esse velho do diabo já deve estar dormindo faz tempo…”, pensou.
Colocou sua mão na maçaneta e empurrou a porta, que rangeu baixinho. Sentiu o vento gelado da noite surrar seu corpo e um tremor dominou os sentidos da velha. A janela estava aberta e as cortinas balançavam-se com o vento que levava os primeiros pingos de chuva para dentro do quarto. A escuridão parecia maior ali, como se a abraçasse. “Como esse maluco pode dormir com a janela aberta nesse vendaval?”, pensou.
Dona Rute hesitou um pouco ao ver o vulto enrolado no cobertor deitado na cama. Mas ela já estava lá e trazia a tesoura roubada. Os amigos contavam com ela. Então, após segurar o mais firme que podia a tesoura na mão, aproximou-se da cama e arqueou seu corpo para frente. Olhou para o vulto estático e desferiu vários golpes com o máximo de força que conseguiu, a maioria deles na região da cabeça e do pescoço. A cada estocada ouvia o barulho da tesoura rasgando a carne e invadindo o corpo de sua vítima.
Dona Rute pegou uma toalhinha que trazia sob uma das pernas, limpou a mão e enrolou a tesoura lambuzada de sangue e depois a guardou debaixo do casaquinho. Saiu do quarto sem fazer barulho e seguiu ao seu.
Seu coração parecia que ia explodir e a respiração acelerada fazia seu peito chiar. Gotículas de suor frio brotavam em sua testa e ela tremia tanto que mal podia secá-las com as mangas do casaco.
Ao adentrar em seu quarto, retirou uma parte do lençol da cama e escondeu a tesoura com a toalha dentro da espuma do colchão, em um buraco que ela usava para esconder outras coisas. Deixaria ali pelo menos até o dia seguinte, quando decidiria o que fazer.
A velha não conseguiu pregar os olhos durante toda a noite. Tremia-se toda sob o cobertor. E sua memória, mesmo falha, não a deixava esquecer do momento em que a tesoura subia e descia fazendo o sangue espirrar. Quando os primeiros raios de sol começaram a invadir seus aposentos, percebeu que já não havia vento lá fora e nem nuvens de chuva. Tudo parecia normal. Foi então que um grito agudo e desesperado arranhou seus tímpanos. Seu coração, que já estava mais calmo, voltou a acelerar. Ela se ajeitou como pôde em alguns minutos, colocou-se em sua cadeira com dificuldade e partiu acelerada para o corredor, onde encontrou Sergio e Romeu. Os dois também estavam com os olhos esbugalhados.
— Acho que deu certo… — comentou ela deixando escapar um sorriso no canto da boca.
— Não, sua maluca! — protestou Sergio. — Olha lá.
Dona Rute mirou os olhos em direção ao quarto de Ezequiel e algumas enfermeiras cercavam a porta. Uma delas segurava a barriga com a mão, mas não aguentou, dobrou-se e vomitou no corredor.
Girou as rodas da cadeira com receio pelo corredor, em direção ao quarto de Ezequiel. De relance, Dona Rute pode ver o corpo de uma moça nua, sem pele e escalpelada sobre um lençol empapado em sangue.
Dona Rute fez que ia vomitar, mas virou sua cadeira para outro lado antes que acontecesse.
— Eu não fiz isso… — disse ela retornando aos amigos — Eu não fiz isso…
— É claro que não fez, velha maluca! — disse Sergio.
— O Ezequiel desapareceu e levou com ele o couro da Aninha — disse Romeu em um sussurro.
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