Vizinhança

Quando dona Nina recobrou a consciência, estava vendada, amarrada, nua e haviam várias pessoas conversando ao seu redor. A velha senhora não conseguia imaginar como poderia ter acabado nesse infortúnio. Mas tudo começou com a mudança dos novos vizinhos. 

 

Era sábado de manhã, umas sete horas, quando dona Nina acordou e abriu as cortinas do quarto. A luz do sol entrou sorrateira acomodando-se em todos os cantos outrora ocupados pelas sombras. A poeira silenciosa dançava à sua frente, dourada pelos raios que atravessavam os vidros. Entretanto, o que lhe causou estranheza foi o que viu além da janela. Espreguiçou-se e esfregou os olhos: não estava sonhando, havia movimento na velha casa desocupada, ao lado da praça da igreja. 

Dona Nina ajeitou-se por trás das cortinas e continuou espiando. Um furgão estava estacionado na frente do imóvel. Ela havia ouvido uns boatos pela vizinhança na última semana, diziam que haviam comprado a propriedade. A velha achou que finalmente iriam reformá-la e tirar aquele aspecto de abandonado da rua da igreja. No entanto, os novos moradores não a reformaram antes de se mudarem.

Chateada, fechou as cortinas com rispidez. Vestiu seu roupão amarelo e arrastou seus passos, um a um. Tateava a parede para não cair, suas pernas trêmulas já não lhe obedeciam como antigamente. 

Depois de preparar o café, sentou-se em uma das cadeiras da mesa e serviu-se com uma xícara. O vapor do líquido escuro subia rebolando sobre sua cabeça. Pensava no quanto a casa era espaçosa e em como ser pequena e velha podia ser cansativo naquele lugar. Conversava com as moscas que voavam sobre sua cabeça ou que pousavam na mesa, pois não havia mais ninguém. 

Com algum esforço, dona Nina levantou-se e caminhou até o rádio antigo, uma das coisas que restaram de seu querido Jorge. Girou o botão até sentir um clique. Ligou-o. A velha senhora sempre deixava-o sintonizado na estação católica local. Falavam tudo o que lhe agradava ouvir naqueles dias: amor, compaixão, piedade, humildade… 

Sentou-se novamente e terminou o café com os bolinhos doce que havia preparado no dia anterior. Em seguida lavou a louça suja e limpou a mesa. Apesar de toda a limpeza e organização que dona Nina mantinha, as malditas moscas não paravam de aparecer.

 

***

 

A solitária senhora balançava para lá e para cá em sua cadeira de balanço, na varanda. A brisa da manhã algumas vezes encontrava seus cabelos grisalhos, despenteando-os, mas, com uma mão, rapidamente os colocava no lugar. Os novos vizinhos levavam várias caixas para a varanda. A única criança que a dona Nina havia visto lá era um menino magro que estava na praça, em pé, encarando, com os olhos semicerrados e boca aberta, a torre do sino da igreja. Seus cabelos escorridos, lisos e escuros, voavam com o vento insistente. Mas ele não se movia nem um pouco, parecia paralisado.

A senhora bocejou e interrompeu o balanço. Um vulto se aproximava pela rua. Será Ricardo? Aquele rapaz era-lhe um anjo, passava todas as manhãs para lhe dizer oi. Isso alegrava o resto do seu dia. 

Ricardo passou pelo portãozinho da casa da dona Nina e parou nas escadinhas da varanda:

— Bom dia, dona Nina. 

— Dia, Ricardo. 

— Como a senhora está hoje? Parece muito bem. 

— Ah, meu filho, estou como todos os dias — disse ela sorrindo. — Como está sua mãe? 

— Ela está bem, obrigado. Já conheceu os novos vizinhos? 

— Ainda não fui lá, eu evito caminhar, pois as minhas dores não me deixam. 

— A senhora vai ficar bem — disse Ricardo coçando a cabeça. — A dona Suzana estava falando para minha mãe sobre eles. O nome dele é Isaque. Diz ela que a família morava nas terras do Seu Chico. 

— O granjeiro? 

— Sim. Diz a dona Suzana que o Seu Isaque comprou a casa com o dinheiro da aposentadoria que saiu. 

— E como a dona Suzana sabe dessas coisas? — Perguntou. 

— A senhora sabe como a dona Suzana é, sabe tudo de todo mundo. — Ricardo riu. 

O menino que encarava a torre, recebeu a companhia de sua mãe, uma senhora de cabelos cinzas, alta e magra. Ela usava um vestido longo, florido. Só então o menino se moveu e abraçou a senhora, que afagou seus cabelos. 

— Parecem felizes — comentou dona Nina. — Será que o menino é adotado? Ele parece tão novinho para ser filho de sangue. 

— Sim — concordou Ricardo. — Pelo que eu soube, é sim. A mãe dele morreu no parto e o pai desapareceu quando a mãe ainda estava prenha. O Seu Isaque e a dona Maria são pais de uma das enfermeiras que ajudou no parto. 

— Mas, olha, pena que eles se mudaram sem nem ao menos fazer uma reforma. A cada está muito velha e enfeia a vizinhança. 

Ricardo sorriu. 

— Dona Nina, vou correndo ali no Seu Antenor buscar uma peça para o meu pai antes que ele venha atrás de mim. Até mais. 

E então o moço saiu pelo portão, alcançou a rua e afastou-se correndo sob o sol ameno da manhã. 

 

***

 

Dois dias depois, durante o horário de almoço, a velha preparou uma sopa leve de legumes com frango. E a tomou rapidamente e, após lavar a louça e arrumar a cozinha, voltou para sua cadeira de balanço com seu crochê. Fazia alguns tapetes para uma amiga do bingo. Sentou-se e avistou os novos vizinhos sentados na varanda, próximos à uma churrasqueira portátil. O menino estava em pé, olhando para a praça, parado. 

Mais tarde, já havia concluído um dos tapetes. Seu Isaque tirava um Corcel II da garagem. Ele e sua família usavam roupas bonitas. Ele acenou para a velha quando viu que ela os observava, então ele caminhou até o seu encontro e escorou-se no murinho da rua. 

— Boa tarde, vizinha! Sou Isaque — disse acenando. — Nos mudamos para cá sábado passado. 

— Oi, sou a dona Nina. Me perdoe por não ter ido cumprimentá-los ainda, minhas pernas estão me matando. 

— Não tem problema, eu entendo — disse Seu Isaque. — Nós vamos à cidade hoje. Será que a senhora poderia ficar de olho em nossa casa enquanto isso? É que há muitas caixas ali fora ainda. A senhora tem algum compromisso? 

Seu Isaque possuía um vozeirão carregado de sotaque e os olhos azuis. 

— Tudo bem, seu Isaque. Eu nunca saio desta varanda mesmo. Divirtam-se. 

Isaque consentiu com a cabeça e se foi sorrindo. Sua esposa esperava-o ao lado do carro e o menino já estava dentro. Ele ligou o motor e foram rua acima.

 

***

 

Já estava escurecendo e os vizinhos não voltavam. Dona Nina queria entrar e preparar o jantar, mas havia dito que ficaria de olho na casa deles, além de que aquelas moscas lhe sobrevoando já estavam dando-lhe nos nervos. Mesmo assim, levantou-se escorando nos braços da cadeira. Cada dia sentia menos força nas pernas. Em seguida, com dificuldade, desceu a escadinha que dava para o caminho de pedras até o portão da rua, onde sentiu um pouco mais de dificuldade para andar, devido à má qualidade da calçada e ao breu do fim do dia. Caminhou lentamente até chegar à cerca dos vizinhos. 

— Seu Isaque? — Chamou.

Talvez eles tenham voltado sem que eu percebesse. Eu poderia ter me distraído com o crochê ou cochilado, pensou. Mas ninguém lhe atendeu. E a pouca luz que havia era do sol se pondo. No entanto havia algo lá dentro, uma luz trêmula e amarelada vencia o vidro canelado da janela e intrigava dona Nina. Por curiosidade, a velha abriu o portãozinho de ferro dos vizinhos e atravessou a calçada de cimento pelo jardim e acessou a varanda, onde havia uma porta, de lata e vidro. Em seguida, olhou através do vidro.

Havia uma mesa coberta por um tecido grosso e negro onde repousava uma bandeja prateada tomada por muitas velas acesas, que produziam sombras fantasmagóricas na parede oposta. Sobre a mesa havia também uma espécie de adaga e algo semelhante a osso. 

— O que faz aqui, Dona Nina? — disse uma voz atrás de si. 

 

***

 

Dona Nina virou-se em um salto. Seu coração cansado quase saía pela boca e o sangue corria rápido em suas veias. Mas era Ricardo escorado na cerca. 

— O que faz aqui, dona Nina? 

Ela, ainda assustada, chamou-o para mais perto com um gesto com a mão, queria mostrar-lhe o que achava ser um altar. 

— Venha, veja — disse ela. 

Ricardo se aproximou e colocando o rosto entre as mãos no vidro, observou o interior da casa. 

— Uau! O que será isso? 

— O seu Isaque foi gentil comigo hoje. Mas ele saiu com sua família para a cidade e não voltaram mais. 

Ricardo ainda olhava através do vidro. 

— Veja, dona Nina. Ali naquele canto. 

Já era praticamente noite, então não podia ver muito bem mesmo com a luz das velas. Entretanto, em um dos cantos da sala, havia uma espécie de manto negro com um símbolo estranho, pendurado em um mancebo. A velha fez o sinal da cruz. 

— É só um casaco — sugeriu Ricardo. — Venha dona Nina, vou te ajudar a chegar até sua varanda. 

Ele segurou o braço arqueado da pobre senhora e foram calmamente até sua varanda. As estrelas já começavam a brilhar no céu. 

— Boa noite, dona Nina. E não se preocupe com aquilo. Não é nada de mais. 

Ela sorriu para ele e acenou, despedindo-se. Faria, finalmente, seu jantar. 

Depois que comeu sentou-se no sofá, e ligou a TV. No único canal que pegava por aquelas bandas, estava passando um filme antigo. Seus olhos pesaram olhando as cenas em preto e branco e, pouco a pouco, eles se fecharam. Dormiu. 

Acordou no meio da madrugada com o barulho da TV. Levantou-se para beber um copo de água e desligou o aparelho em seguida. Foi quando percebeu murmúrios vindos da rua. Se arrastou até a janela e colocou os olhos na fresta da cortina, ficou ali, espiando. Os vizinhos estavam na praça da igreja. Isaque, Maria e o menino. Estavam em círculo, de cabeças baixas. Recitavam palavras incompreensíveis. Parecia-se com uma prece estranha. 

Dona Nina ficou observando por mais alguns minutos, quando o menino virou, de repente, o rosto em direção à velha e passou a encará-la. Não desgrudou os olhos dela por um longo tempo. A velha, com seu coração saindo pela boca e respiração apertada, não conseguia mexer um músculo sequer. Após mais algumas palavras estranhas, que se pareciam com preces, Isaque e Maria também voltaram seus olhos para a velha. Olhares vazios lhe bombardearam. Estranhos, neutros, não pareciam eles mesmos. Seu coração acelerou ainda mais e então conseguiu se mover. Assustada, correu para o quarto o mais rápido que suas pernas permitiram. 

No quarto, espiou novamente através das cortinas, mas eles já não estavam mais lá. Haviam sumido. Estava tudo escuro lá fora. 

 

***

 

A pobre e assustada dona Nina acordou na manhã de terça-feira com batidas na porta da varanda. Batidas contínuas. 

— Ei, espera um momento! — gritou lá do quarto.  

Colocou seu roupão rapidamente e caminhou com cuidado até a sala. Quando atendeu a porta, deparou-se com uma mulher alta, magra e de cabelos cinzas. Ela segurava um pote de plástico. Era Maria. 

— Bom dia, como a senhora está? 

— Oi, estou bem — respondeu cautelosa, ainda não lhe havia caído a ficha do que havia acontecido na noite anterior. — Bom dia. 

— Trouxe torta de frango para agradecer por ter vigiado nossa casa ontem, enquanto fomos à cidade. 

Dona Nina esticou os braços enrugados e alcançou o pote. Desconfiada, convidou a mulher para entrar e levou o pote para a mesa da cozinha, onde passou o conteúdo para seu próprio pote. Depois separou dois pedaços em pratos. Um para si e outro para a estranha vizinha. Sentaram-se nas cadeiras da mesa. 

— Desculpe-nos por ontem à noite, dona… Dona o quê, mesmo? Me desculpe. 

— Nina, dona Nina. — Disse a velha pausadamente. 

— Desculpe-nos por ontem, dona Nina. Apesar do dinheiro da aposentadoria do Isaque ter sido bom, ainda temos algumas lutas a enfrentar. Estávamos rezando. 

— Não se preocupe, querida. Desculpe ficar espiando vocês também.  

Conversaram mais alguns minutos. A vizinha contou sobre a vida na fazenda. E depois se foi. Era terça-feira, dia de bingo. Dona Nina adornou-se depois de um banho e colocou os tapetes da amiga em sua bolsa. 

 

***

 

Quando voltou do bingo já tinha passado um pouco do meio dia. Esquentou no micro-ondas a torta que dona Maria havia trazido de manhã e comeu apenas aquilo. Foi quando percebeu o pote da vizinha em sua mesa. Ela havia esquecido de levar de volta. Dona Nina odiava ficar com algo que não fosse seu, portanto iria entregar a eles à tarde. Mas antes acomodou-se na cadeira de balanço na varanda. Queria cochilar um pouco. 

Quando acordou já era quase fim de tarde. Dormiu por algumas horas. Ricardo se aproximava vindo da rua. 

— Boa tarde, dona Nina. Passei aqui antes, mas a senhora estava dormindo, preferi não lhe acordar. 

— Boa tarde, meu bem. Ei, pode me ajudar aqui? — Disse estendendo a mão. 

Ricardo se aproximou e a apoiou para que levantasse. Ele ajudou-a a caminhar até a cozinha onde pegou o pote da dona Maria, já lavado. 

— Vou levar este pote para a vizinha. Ela esqueceu aqui mais cedo. 

— Vamos, eu lhe ajudo, dona Nina. 

Para a velha, Ricardo era um amor de rapaz, o neto que ela nunca havia tido. — Quem é correto nunca fracassará e será lembrado para sempre — dizia o rádio que ela nem  lembrava de ter ligado. Desligou-o e saiu apoiada nos braços de Ricardo. 

O rapaz ajudou-a a descer lentamente as escadas da varanda e chegar à rua. E, apesar de ser o final da tarde, o sol ainda queimava a pele enrugada da velha. 

A porta dos vizinhos estava entreaberta. 

— Dona Maria! — chamou ela. 

Chamou mais algumas vezes, mas ninguém lhe atendia. 

— Dona Nina, por que a senhora não entra e deixa sobre a mesa? Acho que eles não vão se importar. 

Ela concordou com Ricardo. Afinal, preferia devolver o pote dessa forma a ter que ficar com coisas que não eram suas. Colocou os olhos na fresta, abriu a porta lentamente e passo a passo foi adentrando o cômodo. As velas acesas no que ela achava que era um altar estavam trêmulas e lhe davam arrepios. Tentou acelerar o passo, mas suas pernas doíam. Alcançou a mesa e deixou o pote, virou-se para voltar e sentiu alguém segurando seu braço com força. 

— Oi, menino. Vim trazer este pote para sua mamãe. Ela esqueceu em casa mais cedo. 

O menino lhe olhava fixo e não piscava por nada. Sua face não expressava nenhuma emoção e seu olhar vazio como o da noite anterior, aterrorizava a senhora. Sua mãozinha apertava o braço da dona Nina a cada segundo mais forte. A velha senhora tentava afastá-lo, mas este não se movia. 

— Está machucando a titia — disse tentando fazê-lo parar. 

A pobre senhora tentava puxar seu braço, mas o menino era muito forte, impossível para uma criança daquele tamanho. E ele apertava mais. Seu coração acelerava. Sua respiração estava ofegante. Já sentia o suor frio brotando em sua testa. Seu braço começara a formigar.

— Maria, me ajude aqui. Dona Maria!

Maria apareceu na porta, vindo do corredor. Estava sorrindo. 

— Algum problema, dona Nina? 

— Ele está apertando meu braço muito forte. Está me machucando. Eu só vim trazer o seu pote. 

Dona Maria se aproximou do filho e ficou como ele. Não esboçava nenhuma emoção. Estava com o olhar vazio. A mãe do menino segurou o outro braço da velha. Depois disso, dona Nina não conseguia se mover para nenhum lado. 

— Dona Nina, a senhora precisa de ajuda? — perguntou Ricardo ao adentrar na sala. 

— Ricardo! Graças a Deus.

Dona Nina virou-se e lá estava Ricardo.

— Ricardo. Me ajuda. Não sei o que está acontecendo. Eles me prenderam.

Entretanto, a expressão de Ricardo tornava-se cada vez mais vazia. Estava ficando como Maria e o menino.

O rapaz, outrora tão amigável com dona Nina, aproximou-se e cobriu a cabeça da velha com um saco de tecido. Ela não podia acreditar. Aquele menino que viu nascer. Aquele menino que alegrava sua vida, que passava todos os dias lhe desejando bom dia. Seu coração disparou ainda mais, e, então, tudo escureceu. Desmaiou.

 

***

 

Quando recobrou a consciência, ainda não podia ver nada, o saco continuava em sua cabeça. Estava amarrada e sentia frio. Estava nua. Tinha dificuldade de respirar. Um arrepio percorreu sua espinha. Seu coração acelerado queria saltar por sua boca. Através do tecido do saco podia ver a luz do que parecia fogo. Luzes trêmulas. Ouvia as vozes de muitas pessoas. Pareciam que comemoravam algo, riam, conversavam… 

Quando pensou em gritar, clamar por socorro, uma voz infantil invadiu o ambiente:

— Atenção, todos! 

Todas as vozes silenciaram de imediato. Dona Nina podia ouvir apenas sua respiração acelerada dentro do saco. 

— Ela acordou. Poderá, agora, testemunhar o mais alto banquete. O expurgo da mente. 

A voz da criança era compassada  e calma e vinha do lado direito da velha. Neste momento uma mão pequenina tirou o saco da cabeça de dona Nina, permitindo que ela vislumbrasse tudo o que acontecia. A sala estava com as luzes apagadas e era iluminada apenas pelas chamas das velas. Ela ouvia zunidos do que pareciam ser moscas e essas rodeavam sua cabeça voando e às vezes pousavam em sua face. Ao seu lado o menino, filho dos novos vizinhos, usava uma capa preta com capuz, quase não podendo se notar sua expressão. Mas ela sabia que ele possuía aquele mesmo olhar neutro de antes. Dona Nina havia sido colocada sobre uma mesa forrada por um tecido grosso e preto. 

Do seu lado esquerdo, havia umas vinte pessoas. Estavam todos nus e naquele momento portavam olhares vazios, inexpressivos. E dona Nina reconhecia a maioria daquelas pessoas. Estavam lá os novos vizinhos, o seu querido Ricardo, os pais dele, dona Suzana e seu marido Euclides, outros vizinhos… Haviam velhos e novos, homens e mulheres. 

— Comecemos o culto — disse o menino, erguendo uma adaga. 

Os olhos da pobre senhora esbugalharam-se e seus pulmões lutavam para respirar. Tremia-se toda, mas não conseguia esboçar um grito sequer. Não lhe saía a voz. 

A criança com a capa encostou a ponta da lâmina da adaga na base do pescoço da velha e pressionou um pouco, fazendo brotar sangue do buraco. 

— N-nã-não — balbuciava dona Nina em meio a calafrios. Sua vista se escurecia aos poucos, enquanto sua pressão caía. 

O menino arrastou o corte, passando por entre os seios murchos da senhora, até o início dos pelos pubianos. O sangue escorria espesso pelos tórax e abdômen. Dona Nina urinou sem controle.

— Tenha misericórdia! — gritou ela segundos antes de desmaiar. 

Quando voltou a si outra vez, percebeu uma fila ao lado da mesa em que estava. Em meio à dor lacerante em todo seu corpo, podia ver o menino mergulhando o dedo em seu sangue e desenhando um símbolo na testa de todos. Cada participante se ajoelhava perante a criança para receber o símbolo. 

Dona Nina não tinha mais controle sobre seu corpo que tremia cada vez mais. Lágrimas escorriam de seus olhos, mas ela não conseguia mais falar ou gritar, apenas emitia grunhidos indistinguível. 

Quando todos receberam o símbolo de sangue em suas testas, voltaram ao seus lugares. Muitos deles portavam facas ou outras ferramentas. Pareciam ansiosos, mas permaneciam extremamente silenciosos, ouvia-se somente o zunir das moscas. 

— Comam, comam, meus servos, deleitem-se da carne. E livrar-vos-ei da inocência dos bondosos, da fraqueza dos justos e da prisão dos livres. — Falou o menino, dessa vez mais alto, quase gritando. 

— Sim, ó, senhor das moscas — falaram em coro. 

O primeiro a se aproximar de dona Nina foi Ricardo. Ele abaixou seus lábios ao rosto da velha senhora e deu-lhe um beijo. Em seguida, mordeu um pedaço generoso da bochecha da velha, mastigando-o com vontade. O sangue escorria até o queixo do rapaz. Dona Nina reuniu toda a força que ainda lhe restava e gritou enquanto pôde. No entanto, outras pessoas se aproximavam. Um senhor, com uma faca, cravou-a na barriga da velha e abriu-a e puxou seu intestino para fora, mordendo-o, esticando-o com as mãos, tentando comer o melhor pedaço que pudesse. 

Outros, usavam alicates para cortar os dedos de dona Nina, ou usavam as unhas para arrancar os olhos. Então ela não viu mais nada. 

 

FIM

 

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